Durante quatro dias dedicados às trilhas de fintechs, infraestrutura de pagamentos e conectividade, o Web Summit Lisboa mostrou que estamos entrando em um novo ciclo geopolítico e tecnológico dos meios de pagamento, com o mundo financeiro deixando de ser unipolar.
O domínio histórico dos EUA — tanto tecnológico quanto monetário — começa a ser questionado de forma estruturada, enquanto China, Europa e o Sul Global emergem como polos de influência, apresentando agendas próprias e ambições declaradas.
O desconforto com a hiperdependência do dólar surgiu em discussões técnicas e demonstrações: há, cada vez mais, uma insatisfação com dependências de infraestruturas, moeda e padrões norte-americanos. O movimento não busca romper abruptamente, mas reposicionar estrategicamente o eixo de influência para além do Norte.
PIX: o Brasil deixa de seguir padrões e começa a criá-los. O PIX, já observado internacionalmente, tornou-se símbolo de soberania tecnológica. O evento reforçou que o Brasil pode liderar inovação em grande escala, transformando-se de benchmark regional a referência geopolítica; infraestruturas digitais públicas ganham robustez e afloram novas dinâmicas de influência no sul global.
China: presença coordenada e ambição visível. O China Summit, inédito, materializa a estratégia de liderar a próxima década tecnológica, com IA, telecom e robótica conectando agendas de exportação de infraestrutura. IA de código aberto acelera inovações, redes regionais de pagamentos ampliam autonomia e soluções cross-border começam a operar fora do eixo USD.
Europa busca soberania: interoperabilidade como estratégia continental. A primeira transferência instantânea P2P entre MB WAY (Portugal) e BLIK (Polônia) — realizada apenas com número de telefone — sinalizou que a Europa está construindo uma infraestrutura própria, interoperável e menos dependente de modelos norte-americanos.
Stablecoins e IA financeira marcaram a transição para o dinheiro do futuro. Pilotos de stablecoins em redes de grandes players, como a Visa, indicam que pagamentos transfronteiriços devem se transformar, enquanto a Creator Agent, copiloto financeiro movido a IA, enfatiza que algoritmos vão processar, orientar e, às vezes, agir sozinhos. A inteligência dominante, portanto, se transforma em poder de influência.
Conclusão: quem cria tecnologia, cria poder. A hegemonia tecnológica dos EUA é desafiada; a China assume liderança com clareza, a Europa busca soberania e o Sul Global — especialmente o Brasil — protagoniza. No século XXI não é quem controla recursos que dita o mundo, mas quem controla a tecnologia do dinheiro. E, pela primeira vez em muito tempo, o Sul Global está no centro do sistema financeiro em evolução.
Valéria Carrete é BRICS Business Council Member, vice-presidente de Emissores da PAGOS e diretora Comercial da TNS